domingo, 14 de novembro de 2010

E tudo começou pelas cantorias

          O ano não fora bom de inverno. O sol escaldante sugava as últimas gotas d'água e desenhava estranhos arabescos na lama escura dos açudes. Os pássaros desistiam dos ninhos. A palma esmorecia e o capim ressecado virava poeira  que era levada em redemoinhos pela ventania do mês de agosto.

          "Seu" Joaquim, morador do Sítio Esperança -  bem próximo ao paredão da Serra da Borborema -  longe de desanimar, e de acordo com a companheira, convidou uma dupla de violeiros  e chamou toda a visinhança.

          Pouco importava o desconforto da pequena sala  no chão de terra batida. A insignificante colheita, as promessas não cumpridas dos políticos locais, as contas na caderneta... tudo parecia esquecido: o que contava, mesmo, naquela "vida severina",  era tão somente a POESIA que saltava da alma acesa da caatinga, criando e recriando imagens naquele espaço árido mas pleno de ternura na voz e nos versos dos dois menestréis do sertão. Dois heróis que na batalha do "Repente" são  capazes de rasgar as entranhas de nossa própria história sem nada  dever aos grandes intelectuais da literatura nacional.
Depois dos cumprimentos, tem início a CANTORIA. Os vates da poesia sertaneja presenteiam os ouvintes com inflamantes sextilhas  e suaves galopes à beira-mar num dilúvio de estrofes cheias de humor, genialidade e sabedoria que transformam o NORDESTE, "com muito orgulho", na maior Academia de Arte e Cultura Popular do Brasil.
          Naqueles instantes mágicos, de desapego material, a POESIA  assume sua verdadeira  e sublime  identidade: VIDA.
         A Cantoria vai noite a dentro...é servido um cafezinho enquanto a bandeja colocada no meio da sala recebe o agrado espontâneo da platéia aos poetas do improviso que se despedem com versos de agradecimentos e avisos de novas  cantorias por esse sertão onde a Poesia  nasce, faça chuva ou faça sol.
          O tempo se  esvai...
          Avança a urbanização.
          Um bom inverno pode acontecer.
          A "seca anunciada" será novamente esquecida; mas a magia daquela noite,  a Cantoria na casa de "Seu"  Joaquim,   permanecerá além do tempo, dos valores sociais e da modernidade pela grandeza humilde dos cantadores e encantadores da viola.

Dulce Lima
APPTA, Tabira, setembro de 2006

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